É inegável o flagrante abuso do dom de línguas
em nossos dias. Para alguns, o simples fato de possuírem o dom já
os torna superiores ou mais espirituais que os demais. Ledo engano. A começar
pelo fato de que o dom de línguas jamais foi evidência
do batismo com o Espírito Santo, como em geral tem sido
entendido atualmente. Na mesma passagem em que Paulo afirma que todos “fomos
batizados em um só Espírito” (1 Co.12:13), ele pergunta: “Falam todos em outras
línguas? Interpretam-nas todos?” (v.30b). Tal pergunta não faria sentido
se a resposta fosse sim. Concluímos daí que nem todos os que são batizados no
Espírito manifestam o dom de línguas. O que evidencia o batismo
no Espírito é o profundo amor que é derramado em nossos corações. Confira:
“E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em
nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” Romanos 5:5
Se o falar em línguas fosse mais importante que isso, Paulo não teria
dito: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não
tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine” (1 Co.13:1).
Portanto, é preferível o amor sem línguas a línguas sem amor. O dom
pode ser bom, mas o amor é o caminho mais excelente (1 Co.12:31). E mesmo
quando todos os dons perderem a sua validade, o que permanecerá serão a fé, a
esperança e o amor, “mas o maior destes é o amor” (1 Co.13:13). Não dá para
rivalizar o menor dos dons com a maior das virtudes. Línguas sem amor não
passam de barulho. Por mais que impressione os homens, não agrada a Deus.
A segunda verdade que precisamos considerar sobre o assunto é que todo cristão
verdadeiramente regenerado pelo Espírito recebeu o batismo e o selo no
momento em que creu no Evangelho. Leia atentamente:
“Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o
evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito
Santo da promessa.” Efésios 1:13
Não se trata de uma experiência posterior à conversão, mas concomitante a ela.
O que geralmente tem sido identificado como “batismo no Espírito
Santo” é uma espécie de êxtase seguida da manifestação do dom
de línguas. Não me atrevo a questionar a legitimidade da experiência,
porém, recuso-me a chamá-la de batismo no Espírito.
Apesar de batizados no momento em que cremos, somos conclamados a encher-nos
constantemente do Espírito (Ef. 5:18). Esta, portanto, é uma experiência
que deve ser contínua na vida do cristão e que deve ser buscada
incessantemente. Encher-se do Espírito não é receber uma nova medida
d’Ele, ou uma porção extra de Sua presença, mas sim submeter-nos cada vez mais
à Sua vontade. Para receber porção dobrada do Espírito Santo, Ele
teria que Se multiplicar por dois. Lembre-se que Ele é uma pessoa, não algo que
possa ser medido. Deus não nos dá do Seu Espírito por medida (Jo.3:34).
Portanto, ou O recebemos por inteiro, não O recebemos. Todavia, quanto mais nos
submetemos a Ele, mas nos enchemos de Sua presença amorosa. Não se trata de
receber mais d’Ele, e sim de Ele receber mais de nós.
Voltando à questão das línguas, importa verificar à luz das Escrituras
que falar em línguas não nos torna mais espirituais. Os coríntios, para
os quais Paulo enviou duas cartas, possuíam todos os dons do Espírito em
abundância, porém, foram classificados como carnais (confira 1 Co.1:7; 3:1).
Provavelmente, a igreja de Corinto era uma das mais
pentecostais/carismáticas/renovadas de seu tempo. Sobrava carisma, faltava
caráter.
O fato de Deus nos conferir um dom que não deu a outros não nos
torna superiores, e sim servos dos demais. Não custa lembrar a exortação
de Jesus: “E, a qualquer que muito for dado, muito se lhe pedirá, e ao que
muito se lhe confiou, muito mais se lhe pedirá” (Lc. 12:48).
Devido à mentalidade predominante em alguns círculos, onde falar em línguas
tornou-se sinônimo de status, muito abuso tem sido cometido. Quem fala
em línguas quer tornar isso notório, e para isso, não hesita em falar em
alto e bom som durante os cultos. Alguns, no afã de chamarem ainda mais
atenção, acrescentam manifestações bizarras como pulos, sapateados,
tremedeiras, gritos, espasmos, etc. Tal exagero já ocorria na igreja de
Corinto, resultando no apelo de Paulo por sua correção:
“Dou graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós
todos. Todavia eu antes quero falar na igreja cinco palavras na minha própria
inteligência, para que possa também instruir os outros, do que dez mil
palavras em língua desconhecida. Irmãos, não sejais meninos no entendimento,
mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento (…) Se, pois, toda a
igreja se congregar num lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem
indoutos ou infiéis, não dirão porventura que estais loucos?”1 Coríntios
14:18-20, 23
Paulo jamais usou o dom para exibir-se, e não encorajava ninguém a
fazê-lo. Quer falar em línguas, fale consigo mesmo. Que razão haveria
para alguém falar em línguas publicamente sem que houvesse
interpretação? Quem seria beneficiado com isso? Se verdadeiramente somos
batizados no Espírito, o amor derramado em nossos corações fará com que nos
preocupemos muito mais com os outros do que conosco mesmo. O que um
visitante vai pensar ao ver-nos exibindo nossos dotes espirituais? Que
benefício nossos irmãos terão daquilo que dissermos em línguas
estranhas?
A única concessão que Paulo faz à manifestação pública do dom de línguas
é no caso de haver quem as interprete.
“E, se alguém falar em língua, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e
por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na
igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus.” 1 Coríntios 14:27-28
O intérprete nem sequer precisa ser uma terceira pessoa. Se o próprio indivíduo
puder interpretar os anseios produzidos pelo Espírito em Seu coração, ele
poderá expressá-los em seu próprio vernáculo.
Não confundamos os dons. Línguas nada têm a ver com profecias. Quem profetiza
fala aos homens. Quem fala em línguas fala exclusivamente a Deus. Então,
por que careceria de intérprete? Para que os demais possam dizer “amém”. As línguas
sempre visam a edificação de quem as fala, nunca a de outros. Mesmo quando
interpretadas, seguem edificando quem as fala, porém, dá aos demais a
oportunidade de colaborarem nesta edificação com sua concordância.
Dois extremos precisam ser evitados. O primeiro é a desordem, onde todos
falam em línguas em alta voz, sem qualquer preocupação com a edificação do
outro. O outro extremo igualmente perigoso é proibir qualquer manifestação do
dom. Eis a recomendação apostólica:
“Portanto, irmãos, procurai, com zelo, profetizar, e não proibais falar línguas.
Mas faça-se tudo decentemente e com ordem.” 1 Coríntios 14:39-40
Como recebê-lo?
Todos os dons estão disponíveis para o Corpo de Cristo. Todavia, Deus os
distribui conforme o Seu propósito. Cada membro recebe dons através dos quais
será útil aos demais.
“Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de
ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o
mesmo Deus que opera tudo em todos. Mas a manifestação do Espírito é
dada a cada um, para o que for útil. Porque a um pelo Espírito é dada a palavra
da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; e a outro,
pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar; e
a outro a operação de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro o dom
de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a
interpretação das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito opera todas
estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer.”1 Coríntios
12:4-11
Portanto, o propósito de Deus deve prevalecer sobre a vontade humana.
Entretanto, não podemos nos esquecer de que “Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Fl.2:13). De maneira que um
desejo ardente de receber algum dom pode ser gerado pelo próprio
Espírito e, por isso, deve ser buscado. Caso contrário, que sentido haveria na
admoestação de Paulo para que busquemos “com zelo os melhores dons” (1 Co.
12:31)?
Porém, antes de buscarmos qualquer dom, devemos verificar quais são
nossas reais motivações. Se forem a glória de Deus e o serviço aos nossos
semelhantes, mui provavelmente tenham sido despertadas pelo Espírito. Mas se
formos motivados por vaidade pessoal, porfia, inveja, ciúmes, Deus certamente
não nos atenderá.
| Autor: Hermes C. Fernandes
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