A questão é: como devemos entender o relacionamento
entre a ciência e o cristianismo? Em uma festa, fui apresentado a um professor
de física. Ao saber que eu era filósofo e teólogo, ele me notificou sobre a
natureza irracional das minhas áreas, argumentando que a ciência removeu a
necessidade da crença em Deus.
Outros defendem a ideia de que ciência e teologia não se misturam, como o óleo e a água. São tão diferentes uma da outra que nenhuma descoberta científica tem qualquer sentido para a teologia, e vice-versa. “Ciência e religião são esferas de vida radicalmente divergentes”, asseguram. Essa opinião foi sacralizada na lei, no julgamento da ciência criacionista em Little Rock, Arkansas, nos Estados Unidos, em dezembro de 1981. Naquele tribunal, a ciência criacionista foi julgada como
religião disfarçada de ciência.Ainda outros parecem crer que a teologia não é racional,
a menos que tenha comprovação científica, e assim passam a procurar
fervorosamente essa confirmação. Quem está certo? Será que a ciência é uma
ameaça ou um auxílio à fé, ou são campos não-correlatos em nível intelectual?
Ao examinarmos esse assunto, devemos manter em mente que
a relação entre a ciência e a teologia não é uma questão científica apenas,
ela envolve a teologia, a filosofia e a história da ciência. À medida que
perscrutamos esses campos em busca de compreensão, descobrimos diversos modelos
de integração, cada um dos quais tendo algo importante a oferecer. A seguir
veremos quatro desses modelos:
Primeiro, a teologia proporciona uma visão de mundo na
qual as pressuposições da ciência são melhor justificadas. A ciência não pode
ser praticada sem alicerces. De fato, requer pressuposições filosóficas
substanciosas, até para começar. Tais pressupostos incluem a existência do
mundo, sua natureza organizada e sua cognoscibilidade, a confiabilidade dos
nossos sentidos e do nosso intelecto para descobrir a verdade, a existência da
própria verdade e a uniformidade da natureza. Muitos têm defendido que estes
pressupostos, apesar de coerentes, com uma visão de mundo naturalista, são
estranhos e sem justificativa conclusiva nessa visão de mundo. Tais
pressupostos são melhor explicados e se encaixam melhor numa cosmovisão
cristã.
O segundo modelo é aquele no qual a teologia complementa
e acrescenta detalhes aos princípios gerais do modelo científico, ou
vice-versa. Ou, então, que ela ajuda a aplicar, de maneira prática, os princípios
no modelo científico, ou vice-versa. Por exemplo, a teologia ensina que os pais
não devem incitar seus filhos à ira, e a psicologia pode acrescentar detalhes
importantes, oferecendo informações’ sobre a natureza e as causas da ira. A
psicologia pode delinear vários testes para avaliar se alguém é ou não uma pessoa
madura, e a teologia pode oferecer uma definição normativa ou padrão do que é
uma pessoa madura.
O terceiro modelo representa as crenças e os métodos da
ciência e da teologia como envolvendo duas áreas da realidade distintas, não-
encaixáveis (e.g., o natural versus o sobrenatural), ou como envolvendo duas
descrições complementares que não interagem entre si – cada uma das quais
parcialmente correta, mas incompleta – da mesma realidade. Cada nível de
descrição não apresenta lacunas que precisariam ser preenchidas pela informação
da outra disciplina. Por exemplo, debates sobre a extensão da Expiação nada
tem a ver com a química inorgânica. Semelhantemente, os teólogos têm pouco
interesse em saber se a molécula de metano possui três ou quatro átomos de
hidrogênio. Adicionalmente, uma descrição teológica de certos aspectos da
maturidade humana (e.g., Sally está-se tornando mais semelhante a Cristo)
pode complementar uma descrição psicológica da maturidade humana (e.g., Sally
está se tornando um self-unificado).
Esse terceiro ponto de vista, de que a ciência e a
teologia são duas descrições parciais complementares do mundo, é muito popular
hoje, e por bons motivos. Ele consegue apreender acuradamente parte da maneira
com que a ciência e a teologia se relacionam. Para entender isso, é importante
compreender a distinção entre as ações primárias e as secundárias, casuais, de
Deus. A grosso modo, o que Deus fez ao abrir o Mar Vermelho foi um ato
causativo primário; o que Deus fez direcionando e mantendo aquele mar antes e
depois de parti-lo envolveu ações causativas secundárias da parte de Deus. A
forma costumeira pela qual Deus opera manifesta-se nas causas secundárias,
pelas quais Ele sustenta a existência dos processos naturais e os emprega como
agentes intermediários para cumprir algum propósito. As causas primárias são a
forma não-costumeira de Deus operar e envolve ações miraculosas diretas,
não-contínuas, de Deus.
O ponto de vista da complementaridade é especialmente
útil quando Deus age através de causas secundárias. Por exemplo, as descrições
químicas da síntese da água a partir do hidrogênio e do oxigênio são
complementares a uma descrição teológica do governo providencial de Deus sobre
os elementos químicos durante a reação. Infelizmente, muitos que advogam o
ponto de vista da complementaridade levam sua posição longe demais, não
deixando espaço para um quarto modelo de integração. Esse abuso do modelo
complementar está arraigado num entendimento inadequado da integração e numa
compreensão imprópria da história e da filosofia da “Ciência”.
De acordo com este quarto modelo de integração, visto que
abordam de modo interativo os mesmos fenômenos, a ciência e a teologia podem
estar de acordo ou em conflito de diversas maneiras. As vezes uma crença científica
será contraditória, quanto à lógica, a uma crença teológica. Por exemplo,
algumas versões do modelo de universo pulsante implicam num universo que não
teve início, e isso contradiz o ensino bíblico de que houve um princípio.
As vezes a ciência e a teologia fazem declarações que
não são contraditórias, do ponto de vista da lógica, ambas poderiam ser
verdadeiras, mas são, contudo, difíceis de se encaixar, ou tendem a ser
mutuamente excludentes. Por exemplo, a maioria dos evolucionistas tem defendido
que a teoria da evolução pesa fortemente contra o entendimento de que os
organismos vivos (incluindo os humanos) têm uma essência ou uma substância que
poderíamos chamar de “alma”. De acordo com a teoria naturalista da evolução, os
organismos vivos são, na sua inteireza, o resultado de processos materiais que
operam em objetos estritamente físicos (e.g., o “caldo orgânico”).
Não há contradição em aceitar a teoria evolucionária
naturalista e ainda assim ver os organismos como criaturas com almas e
essências, como a teologia cristã parece subentender. Mas a realidade da alma e
a existência das essências são difíceis de se encaixar na teoria evolucionária
naturalista.
Também é possível que as crenças científicas e teológicas
se reforcem mutuamente. Por exemplo, alguns defenderam que o Big Bang deu apoio
à crença teológica de que o universo teve um princípio. O mesmo afirma-se sobre
a segunda lei da termodinâmica, quando aplicada ao universo como um todo.
Outros exemplos de descobertas científicas que dão apoio a pressupostos
teológicos incluem o delicado equinócio entre as várias constantes da natureza
{e.g., a gravidade), necessário para que aparecesse qualquer tipo de vida no
universo, as lacunas sistemáticas no registro fóssil, a informação contida no
DNA e a natureza da linguagem humana. Em cada caso, as crenças teológicas já
eram razoáveis sem a ciência, mas as descobertas científicas conferiram apoio
adicional a elas.
O importante neste quarto modelo é que ele permite que as
crenças teológicas penetrem na própria prática da ciência. De fato, não se pode
ler a história da ciência sem notar que a teologia regularmente adentrou na
prática científica, às vezes de modo inadequado, mas outras, de modo bastante
apropriado.
Qualquer compreensão da ciência que desconsidere este
quarto modelo é uma descrição revisionista da história da ciência.
No espírito deste quarto modelo, o filósofo Alvin
Platinga desafiou os cristãos a desenvolverem o que ele chama de ciência
teísta. A ciência teísta está arraigada na ideia de que os cristãos têm a
obrigação de consultar tudo o que sabem – incluindo as crenças teológicas –
para formar e testar hipóteses, ao explicar as coisas que dizem respeito à
ciência e ao avaliar a plausibilidade das teorias científicas.
Mais especificamente, a ciência teísta exprime um
compromisso com a crença de que Deus, concebido como um agente pessoal com
grande poder e inteligência, através do agir primário e direto, assim como do
causar secundário e indireto, criou e planejou o mundo para um objetivo. Ele
interferiu diretamente no curso deste processo em várias ocasiões (e.g., na
criação direta do universo, nos primeiros seres vivos, nas formas básicas de
vida e nos seres humanos). E tais concepções podem entrar na própria textura da
prática científica.
Para esclarecer mais ainda, permita-me delinear três
modos pelos quais as crenças teológicas podem introduzir-se na ciência.
Primeiro, as proposições teológicas podem prover uma bagagem de crenças,
usadas para avaliar uma hipótese científica. As crenças teológicas de que o
universo teve um princípio e de que o adultério é pecaminoso podem ser usadas
para avaliar as hipóteses que afirmam que o universo tem um passado infinito,
ou que o adultério pode ser um sinal de maturidade psicológica.
Segundo, crenças teológicas podem guiar a pesquisa e
gerar predições que podem ser testadas. Por exemplo, as asserções teológicas
de que os tipos básicos de vida foram criados diretamente, de que os humanos
surgiram no Oriente Médio e de que o dilúvio de Noé teve certas características
podem produzir predições verificáveis; isto é, existirão lacunas no registro
fóssil, os restos humanos mais antigos serão encontrados no Oriente Médio e
terá de haver limites no cruzamento de espécies.
Adicionalmente, a ideia de um ato direto, criativo, da
parte de Deus, pode ser usada para explicar coisas que são passíveis de
descobertas pela ciência. A ciência pode descobrir informações no DNA, que o
universo teve um princípio e que a linguagem humana é ímpar, e a teologia pode
prover explicações para essas descobertas.
Nem todos se satisfazem com a noção de ciência teísta.
Por vários motivos, muitos desejam manter a ciência separada da teologia,
embora talvez como um complemento. Alguns empregam a estratégia “
deus-das-lacunas” , na qual só se crê na atuação de Deus quando há lacunas na
natureza. Apela-se para Deus para encobrir a ignorância humana. Todavia, as
lacunas no nosso conhecimento estão-se tornando menores, o que não deixa de
ser uma estratégia fraca.
A ciência teísta, contudo, não limita a atividade de
Deus às brechas. A natureza não é autônoma. Deus está constantemente ativo sustentando
e governando o universo. Tampouco a ciência teísta apela para os atos diretos
de Deus para encobrir a ignorância humana. Tais apelos são feitos somente
quando há boas razões teológicas ou filosóficas para esperar uma
descontinuidade da natureza.
Finalmente, StephenC. Meyer, filósofo do Witworth
College, fez uma distinção entre a ciência empírica e a histórica. A ciência
empírica é uma abordagem não-histórica do mundo, que focaliza os eventos que
podem ser repetidos, que são regularmente recorrentes na natureza (e.g.,
reações químicas). Em contraste, a ciência histórica tem uma natureza
histórica e focaliza os eventos passados, que não podem ser repetidos (e.g., a
morte dos dinossauros). Na história da ciência, os apelos impróprios à ação
causai primária de Deus para explicar certo fenômeno ocorreram na ciência
empírica. Tais apelos eram errôneos, visto que nestes casos Deus age através da
causa secundária, e não primária. A conclusão apropriada envolve limitar o
apelo à atividade causativa primária de Deus à ciência histórica, e não
eliminar completamente tais apelos da “ciência”.
Eis uma segunda objeção à ciência teísta: a ciência
explica as coisas usando as leis naturais, e um ato de Deus não é uma lei da
natureza. Esta objeção é igualmente equivocada. É verdade que explicamos coisas
na ciência empírica apelando para a lei natural. A formação da água a partir do
hidrogênio e do oxigênio, por exemplo, é explicada pelas leis da química. Na
ciência histórica, entretanto, explicamos a existência de algo postulando uma
entidade causai para ele. Os cosmologistas explicam algum aspecto do universo
não só apelando para as leis naturais do movimento, mas também citando o Big
Bang como um evento causai singular. Na arqueologia, na psicologia e na
ciência forense apela-se para atos ou estados de agentes como causas dos
fenômenos (e.g., um determinado comportamento obsessivo foi causado pelo
desejo de ser amado). Isso não é anticientífico, e se os cristãos têm razão
para suspeitar que Deus criou diretamente, digamos, os seres humanos, então
apelar para suas ações encaixa-se num padrão respeitável de explicação
científica.
Em suma, há vários aspectos na integração da ciência e da
teologia, e a ciência teísta é uma parte legítima de tal integração. A teologia
não precisa da ciência para ser racional. Em princípio, porém, nada há de
errado em trazer a teologia de alguém ao exercício da ciência. Deixando as
intimidações intelectuais de lado, é hora de os cristãos repensarem tais
questões e permitirem que a ciência teísta seja parte da forma com que amam a
Deus com suas mentes.
J.P. MORELAND, REVISTA DEFESA DA FÉ – ANO 5 – N°35
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