Propomos aqui um estudo diferenciado,
entre os muitos disponíveis nos livros e revistas. Ele tem duas linhas
de apresentação. Primeiramente, vamos falar sobre a base histórica da
Quaresma e da Páscoa que a Bíblia apresenta. Em segundo lugar,
apresentaremos alguns elementos do amplo e variado campo semântico da
teologia da Quaresma e da Páscoa. Foram escolhidas, aqui, algumas
palavras que são estreitamente relacionadas à celebração da Páscoa desde
o Antigo Testamento até o Novo Testamento. O objetivo deste estudo é
equipar o seu estudo bíblico para esses dois períodos litúrgicos, bem
como enriquecer a sua prática pastoral.
Contexto histórico
Embora seja certo que a ciência e a fé
devam andar de mãos dadas, é preciso afirmar que estas duas grandezas
possuem diferentes campos de atuação. A ciência trabalha com a
racionalidade e a fé gira em torno da revelação de Deus na história.
Assim, o/a estudante da Bíblia deve ler a Escritura Sagrada com os olhos
da razão e da fé, sem receio de ser impedido/a de compreendê-la.
Israel se constituiu, como povo, em meio
ao desmantelamento do período do Bronze e a chegada do Ferro, no Antigo
Oriente Médio (século XIII a.C.). O povo, mais tarde chamado Israel,
teve sua origem entre os grupos de pastores semi-nômades. As figuras que
fazem parte da pré-história dos israelitas - Abraão, Isaac. Jacó,
Moisés, entre muitos outros - foram pastores que viveram na periferia,
isto é, nas estepes da terra de Canaã. Aqui, faz-se necessário uma
explicação: Israel não é nômade, pois não faz uso de camelos, mas ele é
semi-nômade, pois vive da criação de carneiros e ovelhas.
Israel teve sua origem na Mesopotâmia,
via Harã e Aram. A tradição dos patriarcas é transmigrante, isto é,
viajavam muito, mas permaneciam por algum tempo nas regiões visitadas. É
difícil saber a razão dessa cultura da transmigração. Seria a busca de
uma solução para a vida dura e difícil? Seria a esperança de dias
melhores? A teologia bíblica sugere que isso faz parte dos mistérios da
fé.
Após a chegada em Canaã, a família de
Abraão foi viver na periferia das terras férteis daquela região, já
naquela época extremamente cobiçada pelos povos vizinhos. A clã de
Abraão não foi viver com os proprietários das terras agrícolas, mas nas
regiões montanhosas que circundavam a parte fértil, criando carneiros e
ovelhas. Os patriarcas viveram na instabilidade própria das estepes. De
um lado, eles mostravam-se frágeis, mas na verdade eles tinham uma
economia bastante estável. Não pagavam tributos aos proprietários da
terra, já que as estepes não tinham valor econômico para a agricultura.
Além disso, os patriarcas tinham liberdade para migrar continuamente.
Eles sentiam-se livres para viver. Todavia, a liberdade e o direito de
ir e vir não era total: primeiro, eles eram impedidos de viverem nas
regiões agrícolas, pertencentes aos cananeus; segundo, eles precisavam
de água fornecida pelos poços. Como eles viviam em áreas
semi-desérticas, o poço de água era uma raridade. O poço de água
constituía-se algo de grande valor para a sobrevivência dos semi-nômades
e os seus rebanhos.
Dentre os costumes dos pastores
semi-nômades, a Bíblia preservou uma celebração: a Páscoa. Trata-se de
uma cerimônia celebrada todos os anos no mesmo período. Ela é conhecida
como a cerimônia da passagem da estação da Primavera para o Verão. A
razão dessa celebração está nas leis da natureza. É possível viver e
cuidar do rebanho, na região das estepes, durante o Outono, Inverno e
Primavera. Contudo, não é possível suportar o calor do sol de Verão que
queima a pouca pastagem do semi-deserto. Daí, os pastores que vivem
nessas regiões são obrigados a migrarem-se para outros lugares em busca
de água e alimento. O momento crítico é o da saída. Quando os sinais da
chegada do Verão se faziam presentes, numa noite, os pastores celebravam
a saída, em busca de outras paragens provisórias para o sustento da
vida dos familiares e os seus rebanhos. É a saída para a vida. A
cerimônia principal incluía o sacrifício de uma ovelha para que ela
servisse de alimento para toda a família.
Quando os pastores semi-nômades, do
êxodo, alcançaram a terra de Canaã e agregaram-se aos agricultores
cananeus, a celebração da Páscoa ampliou com alguns elementos agrícolas
da Festa dos Pães Àzimos ou Asmos.
Por que a ausência de fermento no pão?
Primeiramente, o povo bíblico procurou
explicar o motivo através da história, chamando-o "pão da pressa". Entre
as mais primitivas prescrições da Páscoa está recomendado que essa
refeição deve ser feita "às pressas" (Ex 12.11-12), porque foi no
inesperado da calada da noite que os escravos hebreus saíram do Egito.
Em segundo lugar, a ausência de fermento
no pão tem a ver com a renovação da vida. Não se pode misturar o antigo
com o novo. Precisa-se criar um novo fermento que dará o sentido para a
nova vida, agora, em liberdade, na terra de Javé.
A celebração da Páscoa, ao longo dos
séculos, antes de Cristo, sofreu algumas alterações de caráter
secundário (comparar Ex 12.1-14; 21-28; 43-51; Dt 16.1-8). Contudo, a
Páscoa nunca modificou o seu sentido de memória dos grandes atos de Deus
em favor do Povo, a fim de que esse gesto possa renovar a esperança
daqueles (as) que estão oprimidos(as). É com essa finalidade que Jesus
reuniu os seus apóstolos em torno de uma mesa para uma derradeira
refeição. A frase que ficou na memória deles foi: "Fazei isso em memória
de mim" (Lc 22.14-20).
Contexto semântico
O campo semântico dos temas "Quaresma e
Páscoa" é vasto. Escolhemos algumas palavras para analisar, no âmbito do
Antigo e do Novo Testamentos.
A) SALVAR
Salvar é um verbo central na Bíblia. A
língua hebraica possui muitos verbos que ajudam a mostrar diversidade e a
riqueza de significado que salvar possui no contexto bíblico. O verbo
salvar tem muitos sinônimos: yasa' = salvar (Êx 1430), ga´al = redimir
(Êx 6.6; Os 13.14), padah = resgatar (Êx 13.13, 15; Os 13.14), ´azar=
socorrer (Js 10.6), nasal = livrar, libertar (Sl 59.2), palat = salvar
(Sl 37.40). Certamente, este o quadro de palavras sinônimas mostra o
grande interesse e importância que o tema salvar desempenha dentro do
ensino bíblico. Todavia, o verbo yasa´ e seus derivados - hosya´ = ele
salva; yesu' = salvação; mosia´= salvador - constituem-se os termos
soteriológicos mais usados Biblia. É que yasa' é o verbo usado quando
Javé ou o seu Ungido são referidos. Por essa razão, o seu uso não é
comum fora do âmbito religioso e teológico.
O conceito "salvar", no Antigo
Testamento, possui uma interessante peculiaridade. "Salvar" não carrega
uma reflexão poética ou mitológica, mas tão somente um testemunho
histórico da ação de Deus em favor dos homens e mulheres, enfim, do
mundo. Assim, o ato salvífico de Javé é mostrado, na Bíblia, de forma
bastante concreta. O povo sofrido lamenta e clama pela ajuda de Deus (Ex
3.7-22) que, em atenção a essa súplica, providencia toda sorte de
auxílio: envia a resposta (Sl 20.6), liberta (Sl 71.2), abençoa (Sl
28.9), salva (Sl 37.40), faz justiça (Sl 54.1), protege (Sl 86.2) e
redime (Sl 106.1) o povo que queixa. Assim, a Bíblia vê Javé como aquele
que age e produz salvação no meio do povo (Sl 12.5). Por isso, Ele é
designado como aquele que realiza atos salvíficos em toda a terra (Sl
74.12).
Salvador é um dos títulos mais usados no
Antigo Testamento para designar Javé. O povo bíblico confessará que
Javé o havia salvado (Is 17.10; 43.3; 51. 24.25). O nome do grande líder
Josué afirma que "Javé é Salvador". O nome de Jesus tem esse mesmo
significado (Lc 1.47)
B) DESERTO
No Antigo Testamento
A palavra deserto possui uma forte
concentração de significado teológico em toda a Bíblia. Para entender o
seu sentido é preciso partir do seu conceito geográfico. O deserto é,
primeiramente, descrito como um lugar terrível (Dt 1.19), de estepes e
barrancos, seco e escuro que ninguém atravessa e habita (Jr 2.6) e,
também, ermo e solitário (Ez 6.14). Apesar dessas conotações negativas, a
história salvífica de Javé teve como palco principal o deserto.
A memória do ato libertador de Javé tem o
deserto como seu cenário central. A história bíblica narra que o povo
israelita, sob a liderança de Moisés, caminhou por quarenta anos no
deserto até chegar à Canaã, a terra que mana leite e mel (Êx 3.8). Os
profetas disseram que esse foi o tempo mais fértil e significativo da
história do povo bíblico (Os 2.14; 13.5-6), e a celebração da Páscoa
inclui, na sua liturgia, a dramatização dos eventos do deserto (Êx
12.1-14; Dt 16.1-8).
Foi no deserto que os/as escravos/as
aprenderam a viver comunitariamente e obedecer ao seu Deus. Além disso,
foi no deserto que esse grupo reconheceu que não podia viver de modo
egoísta e individualista, mas foi nesse austero espaço que os hebreus
renderam desfrutar, de modo comunitário, da graça de Deus. Portanto,
deserto é lugar de desolação, mas também da companhia de Deus (Êx
13.21); é o lugar sem fertilidade, mas foi o tempo pleno da palavra e da
graça de Deus (Jr 22). No deserto, o peregrino olha para o alto e
somente vê o sol escaldante; olha para os lados e somente vê areia
quente. A sua única esperança é confiar em Deus. Esta, certamente, foi a
experiência daquele bando escravos e escravas libertado por Deus, no
Egito. Foi a partir dessa experiência que o profeta Oséias falou
pedagogicamente ao povo esquecido e, conseqüentemente, desobediente,
durante os dias do Reino de Israel - "Eis que eu a atrairei, e a levarei
para o deserto, e lhe falarei ao coração" (2.14).
Novo Testamento
Na tradição pascal veterotestamentária, a
celebração da Páscoa precedia o deserto. Na tradição sinótica, o
deserto precede a Páscoa. O deserto marcou o início do ministério de
Jesus, além de aparecer em algumas vezes história do ministério. Após o
batismo, Jesus retirou-se ao deserto onde jejuou, orou e foi tentado. No
deserto, após vencer a tentação, Ele foi servido pelos anjos. Deste
modo, o deserto é lugar de provação e de providência divina.
Diferentemente do povo de Deus na história da peregrinação no deserto,
Jesus venceu, a provação e manteve-se fiel a Deus. Por isso, ele não
experimentaria a morte às portas da terra prometida, como aconteceu com
Moisés. Assim, junta-se deserto e ressurreição na história de Cristo,
unindo batismo e eucaristia em um mesmo movimento. Batismo e deserto
marcam o início do ministério de Jesus, enquanto a eucaristia e a
ressurreição marcam o final.
A partir daí, a Igreja Cristã - como,
por exemplo, as comunidades do Apocalipse - enxergam a sua provação como
o deserto, onde as águas do dragão tentam engolir a comunidade (a
provação) e o deserto engole a água (providência).
C) O NÚMER0 40
No Antigo Testamento
O povo tem tentado entender o
significado dos números, porém é, provavelmente, impossível chegar a uma
explicação plena e completa. Cada povo constrói uma simbologia muito
própria. Portanto, não é possível explicar o significado hebraico do
número 40, tomando por base o sentido egípcio ou cananeu.
O número 40, entre os israelitas,
certamente, possui um significado teológico que tem sua origem na
própria história do povo. É necessário lembrar que os ensinos, hinos,
liturgias, ou outra expressão de comunicação, contidos na Bíblia,
deverão ser vistas à luz da experiência histórica do povo. Assim deve
ser visto o significado do número 40.
No Antigo Testamento, o número 40 ocorre
muitas vezes relacionado a momentos significativos da história bíblica.
Entre tantas ocorrências, quatro são destaques no Antigo Testamento: o
período do dilúvio foi de 40 dias (Gn 7.4); os hebreus caminharam 40
anos pelos desertos até atingir Canaã (Js 5,6); a duração do bom reinado
de Davi foi de 40 anos (2Sm 5.4); Elias caminhou 40 dias para encontrar
com Deus no Sinai (lRs 19.8). Estas quatro ocorrências estão ligadas a
eventos fundantes e significativos na história bíblica do Antigo
Testamento. Não deveríamos entender o número 40 como um múltiplo de
quatro? O número 4, provavelmente, tem a ver com os quatro pontos
cardeais dos quais vêm os quatro ventos que abastecem a terra de
oxigênio. O relato da Criação afirma que quatro rios irrigam toda a
terra (Gn 2.10-12). Não estaríamos diante do símbolo da intervenção
divina que renova a vida e a esperança no mundo? Por tudo isso que foi
falado, acima, provavelmente, o número 40 sinaliza o início de um novo
período de atividade de Deus.
No Novo Testamento
No NT, o simbolismo do número 40
continua. Por exemplo, Jesus recolhe-se no deserto por 40 dias e 40
noites (Mt 4.3; Mc 1.1; Lc 4.2). Uma outra ocorrência significativa, na
vida e obra de Jesus, é mencionada por Atos dos Apóstolos: Jesus, após a
ressurreição, permaneceu na terra 40 dias (At 1.3). Certamente, o
número 40 lembra a difícil, mas significativa caminhada do povo de
Israel no deserto.
D) PÁSCOA
No Antigo Testamento
O nome na Bíblia não é um simples rótulo
que se coloca em uma pessoa ou acontecimento para torná-lo mais
atraente. O nome representa a realidade profunda do ser que o conduz.
Assim é a Páscoa. A palavra páscoa vem do hebraico pesah cujo
significado é salto, movimento, caminhada, travessia. O nome pesah está
estreitamente ligado à história dos acontecimentos que antecederam a
saída dos/as escravos/as hebreus e hebréias, do Egito (Êx 12.11, 21, 27,
43, 48; 34.25), em direção à liberdade e à vida plena, em Canaã.
O termo pesah = salto, travessia, é
histórico, mas ganha sentido teológico por várias razões: Deus passou ao
largo das portas das casas dos/as escravos/as hebreus e hebréias,
pintadas com sangue de carneiro sacrificado, e assim, livrando os filhos
primogênitos da morte (Êx 12.12-13, 23); Deus fez com que esse grupo de
escravos/as atravessassem os desertos para ganhar a liberdade na terra
da promessa, Canaã. Por fim, Deus fez os hebreus e hebréias saltarem da
escravidão para a liberdade, da angústia para o prazer de viver e da
morte para a vida.
Todos esses motivos históricos levaram
os descendentes desses/as escravos/as a organizarem uma celebração
cúltica onde a ênfase seria lembrar os grandes atos salvíficos de Deus,
em favor de seus pais que eram escravos/as no Egito. Assim, a partir da
chegada a Canaã, os/as descendentes desses/as escravos/as passaram a
celebrar, uma vez por a o, esse grande salto, dos hebreus, para ganhatem
a liberdade. Naturalmente que o nome dessa celebração veio a ser pesah,
isto é, páscoa. É suposto que, a partir da chegada em Canaã, fim do
século XIII a.C., o povo hebreu celebrou a Páscoa, cuja finalidade
primordial é ensinar as futuras gerações que Deus liberta e oferece vida
plena a todos/as. Assim, quem celebra a Páscoa aprende que Deus não
admite escravidão.
No Novo Testamento
A festa da Páscoa, no cristianismo, é um
dos elementos que anuncia a origem judaica da fé cristã. É importante
nesse caminho perceber que na celebração da Festa da Páscoa judaica o
drama fundante da fé cristã se insere de forma decisiva.
Jesus, na condução da refeição pascal,
anunciou o memorial que identificaria as reuniões dos futuros seguidores
de seu movimento. A partir da páscoa judaica - providência divina e
libertação - o cristianismo anuncia a redenção e a ressurreição. Embora
pareçam distintos, esses termos têm profundas ligações com o sentido
veterotestamentário.
A morte de Jesus, em meio às celebrações
pascais, representou a vitória aparente das forças da morte. Os poderes
instituídos venceram o Ungido de Deus. Contudo, a ressurreição é a
resposta de Deus que anuncia a vitória definitiva da vida. Com isso, a
ressurreição de Cristo representa a providência divina que salva o
Ungido e o liberta, desta vez, da força da morte.
Deste modo, a Páscoa cristã relê a
concepção judaica antiga, ampliando o campo da libertação para a
libertação da morte. Com isso, o sentido de ressurreição do indivíduo -
novidade no pensamento judaico - junta-se ao conceito de Páscoa
definindo os contornos da fé cristã.
E) MEMÓRIA
No Antigo Testamento
No Antigo Testamento, encontramos dois
verbos importantes para a compreensão do significado de celebração e
culto: lembrar e esquecer. Evidentemente que lembrar é mais importante
que esquecer. Na língua hebraica, lembrar é zakar. A ordem de Moisés aos
escravos hebreus, no Egito, explica bem o valor de zakar = lembrar para
aquele povo em formação: "Lembrai-vos deste mesmo dia, em que saíste do
Egito, da casa da servidão; pois com mão forte Javé vos tirou de lá..."
(Êx 13.3). Por outro do, xakah = esquecer possui o significado de
apagar da memória tudo o que Deus fez em favor do ser humano e do mundo.
Assim, a recomendação de Moisés transformou-se na mente que deu motivo e
razão a toda festa ou celebração comunitária. Por isso a recomendação
bíblica é enfática e urgente: "Lembrai-vos e não vos esqueçais" (Dt
9.7).
No Antigo Testamento, os verbos lembrar e
esquecer estão muito relacionados à atuação de Deus mundo. Assim, não é
encontrada indicação bíblica para que o povo lembre e celebre a data de
aniversário de algum líder do povo. A recomendação bíblica é para que o
povo lembre, primeiramente, dos atos salvíficos de Deus em favor de
homens e mulheres ao longo da história. Ao mesmo tempo, a necessidade de
uma ordem na comunidade fez com que os Líderes apelassem para que povo
lembrasse dos mandamentos divinos.
A importância de lembrar é, na Bíblia,
tão grande e fundamental para a existência da humanidade do povo bíblico
que legisladores (Nm 15.39), historiadores (Dt 6.5-9; 26.20-24),
sacerdotes (Sl 136), profetas (Jr 2.2; Mq 6.1-5), sábios (Ec 12.1)
recomendavam ao povo a guardar na memória, bem como celebrar, os favores
de Deus. Para a Bíblia, zakar = lembrar é criar, construir e lançar as
bases de um povo, enquanto que esquecer é o mesmo que destruir e fazer
morrer a esperança.
No Novo Testamento
A memória é a base da sobrevivência do
povo judeu. Começando pela lembrança da criação e a conseqüente
manutenção da vida por Deus, passando pelos atos do passado, que
confirmam a ação de Deus em favor de seu povo e garantem o futuro
escatológico, chega, inclusive, até a perpetuação do nome.
O verbo relembrar aparece poucas vezes
no Novo Testamento, sendo que, nestas poucas vezes há uma maior
concentração em textos litúrgicos, de modo especial nos textos
eucarísticos, isto é, ligados à Celebração da Ceia do Senhor. Paulo usa
esse verbo quando ele quer chamar a atenção da comunidade de Corinto
sobre a tradição eucarística que ele recebeu (l Co 11.24). Na maioria
dos casos, o uso do verbo está associado ao contexto veterotestamentário
do relembrar para não morrer. Tanto que, mesmo no uso negativo do verbo
que o livro de Hebreus faz, há diálogo com a tradição do AT. Para
Hebreus (10.3), o relembrar da tradição mantém viva a consciência do
pecado. Deste modo, para a epístola, o sacrifício de Jesus supera esse
relembrar constante.
A tradição veterotestamentária fecunda
os poucos textos do Novo Testamento, onde a maior parte aponta para a
importância do memorial pascal e da própria pessoa de Cristo e se tornam
em sinalização presente dos atos salvíficos de Deus. A pessoa de Cristo
e o Espírito Santo se tornam em atualização constante da memória
salvífica.
F) OVELHA, CARNEIRO
No Antigo Testamento
Entre os elementos da refeição pascal, a
carne animal é, no Antigo Testamento, a mais constante, em todas as
prescrições. O animal que fornece a carne para o sacrifício pascal é o
kebes ou keseb cordeiro macho. A literatura do Antigo Testamento mostra
que esse anima era muito querido pelo povo bíblico, por várias razões:
(a) o kebes = carneiro era considerado o animal doméstico mais popular,
por Israel e os povos vizinhos; (b) em Israel era proibido castra-lo ou
mesmo adquiri-lo estéril de outros povo: (Lv 22.24-25); (c) não é por
acaso que a legislação determinava o carneiro como animal mais desejado
para o sacrifício (Êx 125); (d) ele é usado metaforicamente para exaltar
a afetividade entre o ser humano e o animal (2Sm 12,3) que dá força
coragem ao pastor para defendê-la do perigo (l Sm 17.34; Ez 34.1-31).
Por essas razões, Israel era comparado a uma ovelha desgarrada (Sl
119.176). Contudo, o exemplo mais claro encontra-se no 4º canto do Servo
de Javé (Is 52.13-53.12), quando, numa riquíssima metáfora, o povo
exilado na Babilônia é comparado a uma inocente ovelha (Is 53.7).
A razão do grande carinho do povo
bíblico pelo carneiro ou a ovelha tem um motivo histórico. Inicialmente,
Israel foi um povo das estepes que circundavam as cobiçadas regiões
agrícolas; após a chegada a Canaã, o povo bíblico alcançou as montanhas
da Palestina (Jz 1.19, 27-29), e somente, mais tarde, é que eles
conquistaram as planícies, tornando-se agricultores. Assim, o carneiro e
a ovelha fizeram parte da história do povo bíblico nas duas primeiras
fases de sua vida. Além de alimentar e proteger o povo do frio, esse
animal era o símbolo da mansidão.
No Novo Testamento
O Novo Testamento usa o termo cordeiro
poucas vezes. A partir da tradução da Bíblia Hebraica para o grego,
(Septuaginta), há uma distinção entre a ovelha (próbaton) e cordeiro
(amnós). Amnós designava o cordeiro de um ano. Essa condição era
requerida para o sacrifício expiatório da tradição veterotestamentária. O
cristianismo em seus escritos canônicos usa a figura do cordeiro para
explicar a morte de Jesus. Ele aparece como o cordeiro que redime todo o
povo (Jo 1.29-34; I Pd 1.19).
Com isso, o escândalo da cruz ganha um
sentido teológico de expiação do pecado. Jesus, com sua morte, assumiu o
papel de cordeiro que, mediante o sangue, expia o pecado. Esse sentido
vicário surge como uma releitura do impacto negativo que a cruz causou
na comunidade (que Paulo define com o termo escândalo).
G) REFEIÇÃO PASCAL
No Antigo Testamento
As prescrições para a refeição pascal
não são uniformes e fáceis de compreendê-las na ordem cronológica.
Todavia, tomemos uma das reportagens encontradas no Antigo Testamento
(Êx 12.1-14) para esboçar a qualidade da refeição pascal.
Provavelmente, este texto contém alguns
elementos primitivos dessa celebração. Primeiro, o sacrifício da ovelha
deveria ser realizado no crepúsculo do dia 14 do 1º mês do ano. Segundo,
o animal a ser sacrificado deveria estar escolhido e separado a partir
do dia 10. Terceiro, a oferta deveria ser comida por todos os membros da
família, bem como dos vizinhos e amigos convidados. Quarto, o animal
deveria ser escolhido do rebanho jovem de carneiro, não devendo
apresentar qualquer defeito ou mancha. Quinto, o sangue do carneiro
deveria ser passado nas portas e nas travessas das casas. Sexto, a carne
do carneiro sacrificado deverá ser assada no fogo e comida, à noite,
acompanhada de pães ázimos e ervas amargas. Sétimo, era proibido comer
carne crua ou cozida na água, bem como algumas partes do animal, como a
cabeça, as vísceras e as pernas. Oitavo, toda a refeição prescrita
deveria ser comida apressadamente, numa atmosfera de dramatização, isto
é, com lombos cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. Nono, as
ofertas deveriam ser comidas dentro da casa, até o alvorecer. O que
restasse dessa refeição deveria ser totalmente queimada.
De tudo o que foi esboçado, a partir do
relato de Êxodo 12.1-14, algumas conclusões ficam salientes: (1) essa
liturgia pascal quer destacar a importância da família para a
sobrevivência futura do povo bíblico; (2) o valor da mesa de refeição
não é somente para o alimento físico, mas também serve para o
fortalecimento dos laços comunitários e com Deus; (3) essa reunião
destinava-se manter viva a memória de libertação do povo, através da
dramatização dos fatos ocorridos durante o processo de fuga da
escravidão egípcia.
No Novo Testamento
A refeição comunitária é um dos
elementos importantes na fé israelita. Na fé veterotestamentária, ela
define etnia e família. Por isso, era uma questão complicada para um
judeu a refeição com um não judeu. O cristianismo conservou esse
elemento importante da fé cristã, mas dando-lhe um sentido mais amplo,
onde a refeição definia o povo de Deus, que não era retratado nem
sanguineamente e nem geograficamente, mas sim pelo conceito da confissão
de fé (aqueles que fazem a vontade de meu Pai).
Nos eventos pascais que marcaram a
paixão de Cristo, a refeição inicia e conclui o drama. Antes da prisão,
Jesus come a refeição pascal com seus discípulos e institui o memorial
da Páscoa. Após a ressurreição, Jesus revive a refeição pascal, comendo
com os discípulos (Lc 24,30ss; Mc 16.14).
H) RESSURREIÇÃO
O conceito de ressurreição é um conceito
muito tardio na fé judaica. Alguns profetas anunciaram a ressurreição
do povo como uma expectativa de redenção do povo. A ressurreição do
indivíduo só vai aparecer no pensamento judaico a partir do 2º século
a.C. É uma das expectativas importantes que irá fecundar o pensamento
apocalíptico, que surge nesse período. Deste modo, soma-se a
ressurreição dois outros importantes temas teológicos: fé em um mundo
vindouro, que significaria a intervenção definitiva de Deus na história
humana e o julgamento escatológico, onde os bons serão punidos e os
injustos serão condenados.
No conceito de ressurreição, mais do que
a vitória definitiva da vida sobre a morte, aparece o conceito da
justiça divina que será exercida no momento da implementação definitiva
do Reino de Deus (Reino da Justiça). É comum nos extratos mais antigos
do Novo Testamento o uso do verbo levantar (egeiro) no passivo,
demonstrando com isso a ação divina na salvação de Jesus da morte. Este
sentido é, também, aplicado a comunidade cristã a qual participa da
morte e, conseqüentemente, da ressurreição de Jesus.
I) JEJUM
Jejum - na língua hebraica sum - é a
abstenção de alimento por um espaço de tempo. O jejum era um elemento da
prática religiosa israelita. Todavia, ele era também praticado por
pessoas de muitas religiões antigas. No Antigo Testamento, o jejum tem
alguns objetivos:
1. ele sinaliza o pesar de alguém, em
vista do falecimento de um ente querido (lSm 31.13; 2 Sm 1.12; 3.35) ou
de um desastre nacional (Ne 1.4);
2. ele mostra o sentimento de
arrependimento de alguém, por um gesto indevido. Essa atitude de
arrependimento caracteriza-se como um gesto de auto-humilhação (Ne
9.1-3; Jr 14.12; Jl 1.14; S1 35.13-14);
3. o jejum é um exercício de fé
destinado a chamar a atenção de Deus, em vista de um perigo iminente
(2Sm 12.16-25; Jr 36.9; Jn 3,5);
4. o jejum acontece quando alguém tem
que tomar uma decisão difícil ou iniciar uma missão importante e
espinhosa (Et 4.16). A prática do jejum não teve, na Bíblia, aprovação
unânime do povo. Alguns profetas criticaram a prática do jejum, porque
ele tinha se tornado um rito meramente externo sem sentimento interior
(Is 58.1-14; Jr 14,2; Zc 7.1-7). Após a destruição de Jerusalém (587
a.C.) e o exílio na Babilônia, houve uma enorme valorização da prática
do jejum.
No Novo Testamento, o jejum é pouco
citado, provavelmente em razão da excessiva valorização dada pelos
fariseus. Jesus mostrou-se indiferente quanto ao jejum (Mt 6.16-18; Mc
2.18-20), mas não o excluiu (Mt 4.1-11). Antes, sugere que ele seja
praticado às ocultas, em casa, para que ele não se torne um meio de
promoção pessoal. A Igreja Primitiva adotou o jejum (At 13.2-3; 14.23)
como preparação para a escolha de seus líderes, mas nas cartas dos
apóstolos, o jejum não é mencionado.
A celebração da Páscoa, ao longo dos
séculos, antes de Cristo, sofreu algumas alterações de caráter
secundário. Contudo, a Páscoa nunca modificou o seu sentido de memória
dos grandes atos de Deus em favor do Povo, a fim de que esse gesto possa
renovar a esperança daqueles (as) que estão oprimidos(as).
Fonte: Tércio Machado Siqueira / Paulo Roberto Garcia | Divulgação: Mídia Gospel
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